sexta-feira, 20 de maio de 2022

Samarcande

 


Eu estive lá

 

Na solidão mais cruel

Na paz da caridade,

No inferno da rua cheia

Na lâmina que corta a maldade.

 

Eu estive lá

 

No cruzamento dos pedintes

No banquete sem requintes

Na maldição da poesia

Na oração da freguesia.

 

Eu estive lá

 

Quando mataram os inocentes

E sangraram os dementes

Na frescura do amanhecer.

 

Eu estive lá

 

Quando aboliram a escravidão

E quando capturaram escravos

Nas costas do ouro e do marfim.

 

Eu estive lá

 

Na sombra da mangueira

No fervor da chaleira

Na execução dos criminosos.

 

Eu estive presente

Na missa dos ausentes

Na prece dos descrentes

E na procissão mais recente.

 

Eu estive ausente

Quando me pediram para chorar

E salvar o inocente

Das mãos do indecente.

 

Eu estive distante

Quando as árvores frutificaram,

As flores deram cores

E a vida transbordou.

 

Eu naveguei

Por mares sangrentos

Na estação mais gelada

Expiando pecados.

 

Eu retornei

Quando não me esperavam

E plantei a semente

Dos que já não semeavam.

 

Eu comandei

A revolução dos descontentes

Na fronteira dos existentes

Onde um morto era rei.

 

Eu fiz amor na calçada

Diante de passantes

Saídos de poemas

E teus gemidos eram fonemas.

 

Eu transpassei o mistério

Como um ministério,

O enigma da transparência

Quem sou?

 

Eu estive lá

Nas franjas do tempo

No tampo da fruta vermelha

No lombo do cavalo alado.

 

Eu estive em toda utopia,

Nas tardes de melancolia,

Na aspereza do desejo

Num quarto de despejo.

 

Eu estive lá

Quando Deus se revelou

Aos que o ignoravam

E ninguém o saudou.

 

Eu estive na guerra

Lavrei a terra

Cultivei os campos

E desliguei as máquinas.

 

Eu vi o domo azul da sepultura

E a carne triste da criatura

Que orava em busca de luz

Lá onde não havia cruz.

 

Eu vi a reunião dos terroristas

E a pregação dos desesperados

No deserto dos andarilhos,

Na mortandade dos filhos.

 

Eu estive lá

Quando a família se encontrava no domingo

Para o almoço dos escolhidos

E me deram a melhor parte do banquete dos pobres.

 

Eu estava lá

Quando a luz a todos abençoou

E um rio de mel

Lambuzou a terra para o amor.

 

Eu estive presente

No pior e no melhor

No que chamam uma vida

Essa passagem de ida.

 

Eu vi o nascimento,

A morte, o assassino,

A amante, o destino

Meu corpo virar fumaça.

 

Eu vi o tempo,

O tempo que passa

Concedendo a graça

Da transfiguração.

 

Eu estive duas vezes

Em Quelimane,

Duas vezes em Samarcande.

Fui ao encontro da morte,

Que me destinou a sorte

Da navegação.

 

Singrei outros mares

Bebi em tantos bares

Dormi em tantos corpos

Matei quando me pediram.

 

Atravessei os séculos

Fui negro, fui branco

Fui negreiro, fui escravo

Só não fui monumento.

 

No auge da caminhada

Achei que era bravo,

Mostrei minhas armas ao vento

Caí soprado por uma brisa.

 

Eu montei cavalos de fogo

Acariciei a boca dos leões

Alimentei os mendigos

E trafiquei armas no Togo.

 

Eu caminhei de bengala

Bala e bala

No crepúsculo do rio

A alma transida de frio.

 

Eu adorei a lua,

As estrelas e o sol

Nas montanhas do poente

À espera do último trem.

 

Eu estive lá

Quando os homens plantavam sentidos

E Deus pedia esmola.

 

Eu vi o tempo e a sua morte,

A vida e a sua sorte,

A luz e o seu escuro

O presente e o seu futuro.

 

Eu vi o verde de Machu Picchu,

O domo azul de Tilla-Kari

a cúpula anil de Bibi-Khanym.

 

Eu vi a miséria sem tristeza de Moçambique

A mesquita depois da chuva,

A imensidão do rio dos Bons Sinais

E o voo do pássaro no Índico.

 

Eu vi mais do que tudo

A ovelha pastando

Dentro da capela abandonada.

 

Eu comi figos e pêssegos

Antes de comer a maçã,

Antes dessa longa marcha

Como uma febre terçã.

 

Eu vi a morte me levar

Sem ao menos perguntar

Se eu estava pronto.

 

Agora estou aqui

Decifrando a eternidade

À espera de um novo fragmento

Debulhando contas azuis.

 

Agora estou aqui

lembrando minhas mortes

A primeira, inesquecível,

num navio negreiro

A última de um tiro certeiro

A próxima, que virá,

quem conhece o futuro?

 

Eu estive lá

Entre o homem e a fera

Agora estou aqui

Nessa longa espera.

 

Fui robusto, fui rochedo

Fui poente, fui torpedo,

Agora sou fumaça.

 

Eu estive lá, ao lado de Ulugh Beg,

Vasculhando os céus de Samarcande,

Fixando em suas tábuas mais de mil estrelas

Blasfêmias do saber na sua inocência.

 

Eu estive aqui.

Eu estou aqui.

Olhando o domo azul da capela velatória

Onde pasta a ovelha solitária.

 

(do personagem em Acordei Negro)

Marx e a mercadoria

 


“A riqueza das sociedades onde rege a produção capitalista configura-se em ‘imensa acumulação de mercadorias, e a mercadoria, isoladamente considerada, é a forma elementar dessa riqueza”.

*

“A mercadoria é, antes de mais nada, um objeto externo, uma coisa que, por suas propriedades, satisfaz necessidades humanas, seja qual for a natureza, a origem delas, provenham do estômago ou da fantasia. Não importa a maneira como a coisa satisfaz a necessidade humana, se diretamente, como meio de subsistência, objeto de consumo, ou indiretamente, como meio de produção”.

sábado, 14 de maio de 2022

Com Houellebecq na Patagônia

 


 

Eu amo as viagens e as memórias fugitivas. Mas odeio os viajantes e os seus relatos. Especialmente quando eles são tristes e longos. Não sou o primeiro a pensar assim. Nem o último a cair em contradição. Talvez eu já tenha escrito isso antes. Adoro os pastiches e costumo me repetir. Entre mim e o meu célebre antecessor nesse tipo de frase, cuja sombra se eleva sobre o meu passado como uma árvore que perdeu as folhas, só há diferenças. Não me refiro, obviamente, ao que pode pensar qualquer um, vulgarmente falando, a respeito dos nossos percursos desiguais e das nossas estaturas incomparáveis. Remeto-me a coisas ainda mais simples. Não levei muito tempo para tomar a decisão de contar a viagem que fizemos – Cláudia, minha mulher, e eu, no final de 2007 – com o escritor francês, ganhador do prestigioso Prêmio Goncourt 2010, Michel Houellebecq à Patagônia. Bastou uma semana para que eu estivesse determinado a fazê-lo. Talvez até menos.

     Voltei da Argentina com o texto da quarta-capa do livro que talvez nas horas tristes viesse a escrever tilintando na minha cabeça cheia de ventos da Patagônia e de vinhos tintos de Mendoza. O estilo imitava claramente a retórica otimista e vazia dos marqueteiros amadores e dos escritores principiantes em busca do sucesso de vendas: “Uma reflexão profunda, embora leve, irônica e divertida, sobre o ato de escrever, o sentido da vida e a diferença entre pingüins e lobos-marinhos”. Sem dúvida, pode-se refletir sobre o sentido existência e da literatura a partir da experiência dos pingüins, dos lobos-marinhos e dos escritores em viagens de férias.

     Claude Lévi-Strauss morou nos trópicos e, depois de muito esperar, narrou, acima de tudo, a sua convivência com os índios brasileiros. Éramos todos índios naquela época. Isso não interessa. Vamos ao que deve ser contado. Nós fizemos uma reles viagem de turismo ao “fim do mundo”. Foram míseros sete dias entre Buenos Aires, Ushuaia, El Calafate e novamente Buenos Aires. Os tempos mudaram. Os exploradores também. Estamos na era da aceleração, das pizzas Hut e da vertigem tecnológica em tempo irreal. Não são apenas o frio, o pouco tempo, a natureza da viagem e o tipo de gente contatada que separam radicalmente a nossa “expedição” daquela imortalizada pelo antropólogo francês, mas essencialmente duas categorias circunstanciais: “dentro” e “fora”. Fomos ao exterior. Viajamos para o interior de nós mesmos. É essa narrativa que pretendo fazer aqui: a história de uma viagem ao interior de um homem – sem duplo sentido, por supuesto! Não fui para a cama com Michel Houellebecq – tendo como cenário a deslumbrante Patagônia argentina.


sexta-feira, 13 de maio de 2022

A dívida do Brasil com os escravizados


Em “O Abolicionista”, Joaquim Nabuco, um dos maiores intelectuais brasileiros de todos os tempos, dizia com seu estilo contundente: “Tudo o que significa luta do homem com a natureza, conquista do solo para a habitação e cultura, estradas e edifícios, canaviais e cafezais, a casa do senhor e a senzala dos escravos, igrejas e escolas, alfândegas e correios, telégrafos e caminhos de ferro, academias e hospitais, tudo, absolutamente tudo que existe no país, como resultado do trabalho manual, como emprego de capital, como acumulação de riqueza, não passa de uma doação gratuita da raça que trabalha à que faz trabalhar”.

Uma doação forçada dos negros aos brancos.

      Os negros “doaram gratuitamente” o Brasil construído aos brancos, que nunca os indenizaram por isso. Sempre que alguém brada contra as cotas, eu penso nessa dívida jamais quitada. Somos todos beneficiados por essa “doação” obtida de maneira infame. Pensei nisso há alguns anos ao ler as declarações do então indigesto deputado Jair Bolsonaro ao ser questionado pela contora Preta Gil, no programa CQC, se aceitaria o relacionamento de seu filho com uma negra.

O infame Bolsonaro respondera que “não corria o risco” de ter um filho casado com uma negra, pois, gabou-se, “eles foram muito bem educados”. Bolsonaro deveria ler esse texto de Joaquim Nabuco. Mas seria inútil. Analfabeto intelectual, ele nunca o entenderia.

      Continuo a reler Joaquim Nabuco sobre o primeiro dever de qualquer um no século XIX: “Antes de discutir qual o melhor modo para um povo ser livre de governar-se a si mesmo – é essa a questão que divide os outros – trata de tornar livre a esse povo, aterrando o imenso abismo que separa as duas castas sociais”.

      Para Joaquim Nabuco não havia dúvida, “o abolicionismo deveria ser a escola primária de todos os partidos, o alfabeto da nossa política”. Tudo o mais era menor. Continua sendo. Precisamos abolir o preconceito. Enquanto os Bolsonaro da vida vomitarem infâmias será preciso combatê-los a golpes de Nabuco. Demora. A inteligência cala lentamente no concreto da estupidez. Como foi que elegemos presidente da República um ser grotesco capaz de declarações tão infames?    

quinta-feira, 12 de maio de 2022

Baudelaire: a serpente que dança

 

Babo de ver, gata indolente,
Do teu corpo de modelo,

Como uma lingerie insolente,

Tremeluzir o pelo.

Sobre teu cabelo profundo,

Acres perfumes,

Mar odorante e vagabundo,
Ondas azuis e negrumes,

Como um navio que se espelha

No vento do novo dia,

Minha alma sonhadora aparelha
Para um céu de utopia.
(como um navio que desperta

Com o vento da manhã;

Minha alma sonhadora deserta

Rumo a uma terra pagã.)

 

Teus olhos que nada revelam

De doce nem de fatal,

São joias frias que modelam

O ouro com o vil metal.

Quem te vê nesse andar que balança,

Manhosa de exaustão,

Imaginaria uma serpente que dança

Na ponta de um bastão.

(Ao andar teu corpo balança

Desfilando gozo e tesão,

Parece uma serpente que dança

Na ponta de um bastão.)

Sob o fardo da lascívia

Tua cabeça de infante

Ondeia com a malícia 
De um jovem elefante,
(Criança de lânguida beleza

Tua cabeça por um instante

Balança com a moleza

De um jovem elefante.)

 

E teu corpo se dobra e estira,
Como um barco sem mágoa,

Que costeia a margem e atira

Os seus ferros na água.

Como as vagas alimentadas pelas fontes

Dessas geleiras mordentes,

Quando as águas da tua boca são pontes

Rente ao fio dos teus dentes,


Creio beber da Boêmia um vinho,

Amargo e campeão,

Céu líquido que faz um caminho

De estrelas no meu coração!

sábado, 7 de maio de 2022

Antigos imaginários de verão

 A chegada das férias é sempre um motivo de entendimento na família. 

O desejo de cada um deve ser atendido. 

É só uma questão de diálogo e de boa vontade. 

Em geral, predomina a convergência de interesses. Tudo acaba em coco.
— Quero sombra e água fresca, diz o avô.
— Muito sol e agitação, retruca a neta.
— Mulher gostosa a dar com um pau, pensa o marido, no tédio dos 40 anos.
— Um lugar transbordando de gente legal, grita o adolescente da casa.
— Uma praia com um bom shopping, define a mulher.
— Dias lindos e não tão quentes, sonha a avó.
— Noites bacanas e muito calientes, delira o neto.
— Quero dormir cedo e descansado, planeja o pai.
— Quero dormir tarde e detonado, calcula o filho.
— Quero acordar cedo, informa o avô.
— Não me acordem antes das duas da tarde, ordena a neta.
— Ah, uma praia deserta, a natureza..., balbucia o avô.
— Deserta? Tô fora, berra o neto.
— Ah, uma praia com música tecno, exclama a neta.
— Os passarinhos, suspira a avó.
— Um bom DJ, suspira a neta.
— Não vou ser empregada de vocês na praia, avisa a mãe.
— Não lavo privada, alerta a filha.
— Não corto grama, diz o guri.
— A gente podia ir de avião, sugere a avó.
— De ônibus é pagar mico, reclama a neta.
— Vamos em nosso Gol, estabelece o pai. Duas viagens.
— Melhor não ir então, resmunga a neta.
— Não seria má ideia. Com o dinheiro economizado, faríamos uma boa reforma em nossa casa, especula a mãe.
— Outra reforma? Nunca. Prefiro passar o verão chamando argentino de meu galo, rebela-se o pai.
— Não precisamos levar o gato nem a tia, sugere a filha.
— Mas que fazer do bichinho, assusta-se a família inteira.
— A tia fica cuidando dele, resolve a menina, com um ar cândido. Todos ficam deslumbrados com a ideia.
— O calção que você comprou para mim é muito pequeno, mãe. A moda agora é outra. Quero um de surfista. Grandão.
— O biquíni que você me deu é muito grande, mãe.
— Mas é um fio-dental.
— Não se usa mais. É coisa de criança. Os modelos agora são outros.
— Ainda menores?
— Maiores. Mas, graças ao design, parecem bem menores.
— Qualquer dia vocês vão estar de calcinha na praia, escandaliza-se a avó.
— A moda agora é cuequinha de mulher, esclarece a neta.
— Ainda me lembro das praias do Nordeste, fantasia o avô.
— Quero ir para Atlândida, diz a neta.
— Meu negócio é Santa, informa o adolescente.
— Sem onda, pô, diz a irmã.
— Ficou doida? Com muita onda.
— Cancún é o meu sonho, confessa a mulher.
— Capão da Canoa, define o marido, contando os dias que ainda faltam para o fim das férias. 

— Se não quiserem, vamos para Arroio Teixeira. Escolham.
    Vão todos dormir excitados com a proximidade das férias e dos longos dias de descanso e paz. 

Nada como o verão para unir as famílias num projeto comum e sem idade.

Entrevista/Gilles Lipovetsky : O hiperindividualismo e a medicalização da sociedade

  Por Juremir Machado da Silva   O filósofo francês Gilles Lipovetsky, autor de livros importantes como “O império do e...