segunda-feira, 28 de março de 2022

Cansaço e alegria de ser

 

             Foi um gênio, William Shakespeare, quem concebeu e imortalizou o “ser ou não ser, eis a questão?” Nenhuma novidade. Outro gênio, o poeta francês Jean-Arthur Rimbaud, que revolucionou a poesia mundial antes de completar 20 anos de idade e, sem esperar a fama e o reconhecimento, foi traficar armas na África, estilhaçou a nossa identidade ao dizer que o “eu é um outro”. Somos muitos num só. Quem somos mesmo? Clarice Lispector, de novo ela, escreveu algo como “estava exausta de tanto ser”. Ser pode cansar.

     Tem noites em que a gente pensa longamente o que é finalmente se sentir concebido. Os pensamentos e as definições correm tão claros no silêncio da cama que dá uma vontade louca de acordar todo mundo para contar o que, finalmente, se conseguiu imaginar. Parece que as idéias são fios escorregadios que só podem ser agarrados depois de uma conversa demorada de um sujeito consigo mesmo. Às vezes, a reflexão ganha, nesse jeito de pensar, uma consistência tão grande e nítida, tão profunda, que se chega, com ingenuidade, bem entendido, a crer numa concepção genial, ou quase.

Na espessura turva da madrugada, dando voltas no que somos, no que fomos, no que temos sido, alcançamos um súbito momento cristalino quando tudo, então, de um golpe, surge-nos como uma revelação sobre nós mesmos.

É perigoso que o eu seja um outro? Que risco corremos por causa dessa multiplicidade do eu? Claro que não se está falando de dupla personalidade, uma doença. Fala-se de polissemia, de múltipla personalidade, uma cura, caso seja possível mesmo falar assim. Cura de quê?

Cura do perigo da unidade cega, da rigidez, da inflexibilidade. Proteção contra o excesso de si.

A falta de identidade é um problema. A hipertrofia da identidade, também. Somos em movimento. Mudando.

Ser um só na efemeridade do tempo exaure. Talvez por isso precisemos de ocasiões para vestir fantasia, fazer teatro, mudar de papel, encarnar outro ser.

Na solidão eloqüente da noite, compreendemos tudo isso. Vemos claro como se estivéssemos sob uma lua cheia. Dá vontade até de acender a luz, levantar e anotar palavra por palavra o que se revelou na escuridão. Mas, por preguiça ou medo de que a luz artificial ofusque a verdade recém-descoberta, não o fazemos. Tentamos decorar o que aprendemos em nosso próprio diálogo. Não, não se trata de um monólogo. Nossos diversos “eu” falam uns com os outros.

Aceitamos nossas contradições, admitimos nossos paradoxos, pesamos nossas dúvidas, confrontamos nossos desejos, avaliamos nossos conflitos, aparamos as nossas arestas, multiplicamos as nossas perguntas. Amadurecemos.

Reviramos as frases muitas vezes para que não se percam. Sentimos medo do ridículo: são frases claras, belas até, transparentes. Perdemos o sono, excitados, desesperados para transmitir o que, enfim, sabemos sobre nós.

Passamos do cansaço à alegria de ser. Contemplamos o passado e percebemos o que já não somos. Projetamos o futuro e vislumbramos o que poderemos ser. Bom ou ruim, vemos claro.

Amanhece. Tratamos de contar o que agora sabemos. As frases saem truncadas, pobres, vagas, simples lugares-comuns, esquálidas aproximações, tristes vestígios do que concebemos.

No começo, ficamos desesperados. É como se a luz do dia ou a presença de um outro calassem a nossa voz mais profunda e sincera. Queremos que a noite chegue para estendermos a armadilha que capture as nossas palavras em pensamento. Não funciona. Nunca funciona. Algo sempre escapa. O essencial.

Então, um dia, depois de uma longa maturação, nos limites da consciência, entendemos que esse diálogo profícuo só pode ser estabelecido com um interlocutor: o próprio eu.

A auto-reflexão não precisa transformar-se numa narrativa linear, racional e fixada. Faz-se de um não-dito.

Necessitamos de interlocutores reais e de diálogos no sentido estrito dessa palavra. No entanto, necessitamos também dessa conversa particular com nossa alma.

O mais profundo de nós mesmos talvez só possa ser perscrutado e visitado por nós mesmos sem que seja possível comunicar aos outros o que se viu e ouviu nessa experiência subjetiva transcendental de diálogo consigo mesmo. Quem sabe era disso que tratava a recomendação do sábio: “Conhece-te a ti mesmo.” Recomendação que custamos a aceitar.

Mesmo que não consigamos aprender a exteriorizar essas conversas, elas saem de nós, ganham o mundo, mostram o que somos, revelam-se pelas nossas transformações.

Um dia, de repente, alguém chega e comenta simplesmente: “Como você amadureceu!” Fica-se sem saber o que dizer. Resta sorrir para dentro. E continuar o diálogo.

Dialogar é estar em relação.

Pôr-se no lugar do outro.

Produzir empatia.

Refletir sobre tudo aquilo que cimenta e dá significado à vida da maioria das pessoas num determinado momento.

No mais profundo de si mesmo o indivíduo descobre o outro com suas peculiaridades, sua força e sua fragilidade.

sexta-feira, 18 de março de 2022

Não olhe, veja

 


            Olhar pode ser muito fácil. É o que fazemos com as paisagens. Passamos os olhos sobre elas. Mas dificilmente levantamos o véu de nuvens, de bruma, de sombra ou de sol que as encobre. É muito comum escutar alguém dizer que se emocionou diante de um espetáculo da natureza. Há algo de verdadeiro nisso, certamente. Não se mente sobre algo tão impalpável e pessoal. Contudo, raramente se diz toda a verdade com esse tipo de declaração. Não sabemos olhar em profundidade. O belo acaba por nos confundir ou simplesmente por passar despercebido. Ficamos com a aparência da imagem. Ignoramos o que há por trás dessa película de beleza inicial.

     Devíamos fazer cursos intensivos de contemplação do pôr-do-sol assim como temos aula de fotografia, de alongamento, de direção e de programas de computador. Já não se aprende a pôr corretamente o pé no chão? Já não se aprende a caminhar em perfeita harmonia do organismo com o solo? Aplaudir o pôr-do-sol talvez seja um excesso teatral ou uma banalização. Chorar de felicidade, porém, não seria demasiado. Existe uma prova do incomensurável nisso que se apresenta diariamente a nós como a própria singeleza. Tentar ver a fina camada de êxtase que se revela entre chama e luz do sol é uma arte.

Quantas vezes deixamos de ir à janela, por indiferença, fitar a lua cheia sangrando acima dos arranha-céus? Quantos crepúsculos perdemos por falta de coragem de fechar o livro, desligar a televisão, interromper o trabalho ou apenas de espiar pelos olhos franzidos das nossas janelas? Quantas vezes perdemos o amanhecer, com seus cheiros, matizes e cores, por incapacidade de crer que é único na sua repetição? Quantas vezes deixamos de admirar a beleza singular do nosso pequeno universo particular por falta de visão de mundo?

            Dizem que temos dificuldade para admirar pinturas em museus por falta de cultura e de hábito. Com certeza há muito disso em cada um de nós, quase todos formados na pressa, no culto da aceleração e da utilidade e, principalmente, na perda da importância do sublime. Turistas, por exemplo, costumam ter listas do que não podem deixar de ver. Correm de um lado para o outro e só se sentem em paz, com a obrigação cumprida, quando “riscaram do caderninho” os itens do dia. Mas, afora tudo isso, estou convencido, há um problema de (re)educação do olhar. Não somos educados para ver.

     Olhar é uma dádiva da natureza. Embora simples, descobre o mundo para o ser. Ver é uma atividade complexa da cultura. A ignorância e a sofisticação são aliadas do cinismo. A primeira tem a vantagem de não conhecer a si mesma ou de ser explicada pela falta dos outros. A sofisticação não tem desculpas quando nos afasta da pureza das coisas e impede-nos de perceber, sob os nossos olhos, o que se esconde das nossas vistas e revela-se somente para as lentes sensíveis das nossas almas. Olhamos o mar, as árvores, as montanhas, os corpos, os homens ensimesmados e os pássaros na inconsciência do vôo. Olhamos, quase sempre, sem ver. O que não vemos?

            Não vemos a aura dos seres e dos objetos. Aura é o espírito das coisas. Uma palmeira tem aura. Um homem tem aura. A vida tem aura. Quase nunca as vemos. Gostamos de falar, não de ouvir. Adoramos opinar, não ouvir opiniões. Perdemos a capacidade de sentir o outro, de esperar o outro, de desejar o outro. Tudo isso nos parece um tanto piegas. Nossa arma contra a impossibilidade de ver é o sarcasmo. Sonhamos em ter tempo para não fazer nada, mas quando conseguimos alguns dias de isolamento, ou de falta de atividades “produtivas”, sentimos tédio. Fazemos da vida uma espécie de esteira em tempo integral e não aceitamos parar. Talvez com medo de refletir. Medimos tudo. Controlamos tudo: quantos quilômetros corremos hoje, as batidas do coração, o número semanal de relações sexuais, a produção de endorfina.

Olhar não produz necessariamente reflexão. Pode esbarrar na opacidade e no embaçamento. Não por acaso, falamos em dar uma “olhada” ou em “passar os olhos”. Ver compromete a totalidade do ser. Quem olha, na melhor das perspectivas, observa; quem vê, reflete – duplica o que viu. Estamos na era da imagem. Nunca se produziu tanto para os olhos. Porém, mesmo quando sabemos olhar, não sabemos (vi)ver. O grande desafio de cada um é transformar o seu olhar em visão. Todo mundo deve ser capaz de dizer, depois de ver, “eu vi…vi”.

Entrevista/Gilles Lipovetsky : O hiperindividualismo e a medicalização da sociedade

  Por Juremir Machado da Silva   O filósofo francês Gilles Lipovetsky, autor de livros importantes como “O império do e...