– Eu te traí.
– Obrigado por
me contar.
Foi tudo o que eles se disseram. Era o fim
de um amor de infância e adolescência vivido sem sobressaltos. Tinham perdido a
virgindade juntos. Eram vizinhos desde o nascimento. Haviam aprendido a andar
juntos, brincado juntos, crescido juntos, ido à escola juntos, sonhado e amado
juntos. Não se conheciam separados. A lealdade entre eles era tanta que até na
traição o traído não seria o último a saber. Estavam sentados na sorveteria
onde haviam ousado o primeiro beijo e a última declaração.
Ele ficou sentado à luz da lua cheia até a
noite se pronunciar como uma escuridão sem retorno. Jamais contou, que eu
saiba, a alguém o que pensou naquelas horas em que foi o mais solitário dos
homens. Não chorou, não se lamentou e não a amaldiçoou. Quando amanheceu,
entrou na casa onde sempre vivera, juntou algumas das suas poucas coisas,
despediu-se dos pais e foi para a estação férrea. Se havia tristeza nos olhos
dos pais, havia também uma estranha satisfação. Eles queriam que o filho fosse
embora. O trem entrou na estação pouco depois do meio-dia. Era maio. Fazia
calor. Vivia-se um delicioso veranico. Sem dúvida, era um lindo dia ensolarado.
O movimento de uma estação de trem tinha
algo de metálico como se os sentimentos estivessem deslocados naquele ambiente
de trânsito. O sol faiscava nos trilhos e nos óculos das pessoas acendendo
interrogações. Detalhes insignificantes assim costumam se tornar inesquecíveis.
A locomotiva era vermelha. Lembrava uma cabeça de touro desfigurada. Os vagões
eram de uma cor indefinida e triste como a imagem do armazém de secos e
molhados de tijolos sem reboco. Os passageiros, embora a parada fosse longa,
pareciam temer uma partida antecipada. Precipitavam-se para os carros. Quantos
abraços ele viu antes de embarcar? Nenhum para ele.
Não esperava que ela viesse se despedir. O
que poderiam ainda se dizer? Haviam jurado que só uma traição os separaria.
Mesmo assim, chegou a se confundir. Os cabelos muitos negros e esvoaçantes de
uma moça fizeram-no estremecer. Mordeu o lábio. Sempre mordia o lábio quando se
enganava. A viagem seria longa. Teria de tempo de pensar nela e até de
esquecê-la. Guardava na carteira com o pouco dinheiro dado pelo pai a única
foto que tinha com ela. Não era um tempo de fartura de imagens.
Reencontro – Passaram-se 19 anos. O
tempo é relativo quando aplicado a traições. Eu nunca soube se passou lenta ou
rapidamente para ele. Um indício pode ser apontado: nessas quase duas décadas,
ele jamais voltou para casa. O que isso significa? Que não esqueceu? Que a sua
vida bifurcou de tal maneira e não lhe dar tempo de sentir saudades? Nos três
primeiros anos, nem viu os pais. Depois, passou a recebê-los na sua nova
cidade. Certo é que estudou, diplomou-se, arranjou bom emprego e casou-se com
uma francesa durante o doutorado feito em Grenoble. Tiveram dois filhos.
Em vinte anos, fica estabelecido, pode-se
constituir uma família, construir um presente, sepultar um passado e só olhar
para o futuro. Salvo por certas tardes em que o olhar dele se perdia na
contemplação do horizonte ou que suas mãos deslizavam em caixas cheias de
recibos, de cartas e de algumas fotografias. Sempre que a francesinha o surpreendia
nessa labuta, ele estremecia e tratava de recompor-se mordendo o lábio.
Foi então que o pai dele adoeceu. A vida é
tão simplória nas imposições que faz. Não se preocupa em escolher métodos mais
verossímeis. Voltou. A cidade, que antes lhe parecia enorme, revelou-se
minúscula, quase uma casa de bonecas: florida, arrumadinha, com tudo no lugar.
Percorreu tudo em menos de uma hora. Ao final da tarde, depois de ter passado
horas à cabeceira do velho, viu-se sentado na velha sorveteria. A dona, uma
senhora com o rosto de uma menina que não lhe era estranha, antes que abrisse a
boca, trouxe-lhe o de sempre, pêssego e doce de leite.
Provou o de pêssego de olhos fechados. Foi
despertado por vozes de crianças brigando por sorvete. A mãe tentava acalmar os
filhos. Era ela. Não demorou para que os olhos dos dois se encontrassem. As
crianças já corriam com suas casquinhas para a praça. Nenhum deles sabia o que
dizer.
– Você tem
filhos? – por fim, ela perguntou.
– Como você,
dois.
O silêncio voltou a impor-se como uma
geleira prestes a romper-se. Estavam em pé. O tempo corria como se fugisse do
que poderia acontecer.
– Por quê? – ele
perguntou.
– Por que eu te
traí?
– Não me amava?
– Amava muito.
Você jurou que só ia embora comigo. Eu não podia ir. Precisava arrancar você
deste lugar. Vejo que fiz a coisa certa.
– Como quem foi?
– Com ninguém.
– Que história é
essa?
– Eu te menti.
Ele mordeu o lábio. Passou a noite à luz da lua cheia.
Um mês depois recebeu um presente dele pelo correio: “Tratado da
gratidão”, de Santo Tomás de Aquino. Com uma frase manuscrita: conta comigo
sempre.