sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

Memória no esquecimento

 

A LITERATURA E OS MECANISMOS DA MENTE

ERON DUARTE FAGUNDES*


 

 


 

A arte da palavra para captar os mecanismos da mente. A primeira frase de Memória no esquecimento (2021), novo romance de Juremir Machado da Silva, dá a senha de largada nesse labirinto: “O que é mais doloroso: não conseguir esquecer ou não conseguir lembrar?” Escritor e jornalista, Juremir, desde as ambições mais deslumbradas da juventude em Cai a noite sobre Palomas (1995), passou, a partir de determinado ponto de seus textos, a buscar o despojamento, exercitado em suas crônicas diárias para jornal; em seu romance anterior, Acordei negro (2019), esta metamorfose de texto se aclarava; Memória no esquecimento, apesar do complexo jogo dos desequilíbrios psicológicos da personagem central, vai por esse caminho. No entanto, em Juremir, despojamento jornalístico em momento algum permite ao escritor abdicar da criatividade de seu verbo; no fundo é neste jogo dialético entre as formas simples e um barroquismo inato que se mantém de pé a literatura de Juremir.

Numa das orações iniciais do romance mais transbordante de Juremir, Fronteiras (1999), o narrador anota: “Extasiado, senti-me levitar.” É um pouco assim a impressão do leitor diante de certas passagens da literatura de Juremir. O processo atual da escrita do autor é dar peso concreto a este ato de levitar. A personagem com a mente à deriva em Memória no esquecimento também levita; mas é uma realidade diante das outras personagens e do próprio leitor que pode evocar as realidades espelhadas que já deparou do lado de fora da literatura.

Memória no esquecimento está dividido em quatro partes em que as formas de olhar, ou os pontos de vista, se cruzam, se intercalam, construindo um jogo de vozes narrativas. A descrição duma doença mental, no romance, oscila entre alguma aspereza clínica e a margem de liberdade poética que a ficção pode dar. O resultado é uma investigação entre profundamente ácida e despudoradamente crua das relações entre a mente e o corpo. “como um louco que surtou e não segura mais seu intestino, sua bexiga e seus ressentimentos, misturando urina, fezes e lembranças numa pasta na qual já não sei o que dói mais e o que cheira pior.”

Nos “olhos cinzas de fuligem. Parados.” a paisagem íntima do romance se desenrola, como no vagão do trem que cruza os cenários, ante o olhar fluido da personagem. O vagão que vai passando e o tempo que desaparece transformando as coisas em passado. O passado com o qual o homem doente tem contatos estranhos, entre o “excesso de uma lembrança” (uma “golfada de vômito”) e o “esquecimento”. O vagão passa: os sonhos-lembranças se sucedem. Mas: “Volto a mim. Estou no trem.” A bordo da realidade primeira, objetiva, a tentativa de reconstrução. “Seria um observador sem nome e sem biografia, à margem do protagonista. É o que sou. Uma ausência. A narrativa, contudo, foi me exigindo uma participação que nunca desejei e me constrange.”

“Se me faço entender”, direi que Memória no esquecimento é a depuração de um estilo de escrever em Juremir cuja antiga natureza de muitas metáforas sofre agora um processo de despojamento. Depois de navegações variadas por anotações clínicas, jogos narrativos, complexidades verbais, tudo muito trabalhado nos cruzamentos que vão ocorrendo, a última imagem é o grito final dum menino ruivo: “—Tem uma pandorga indo embora com uma mulher lá no rio." Um pouco como se a pandorga, quase uma imagem de infância ou isto mesmo, fosse um signo para tantas coisas dentro das intenções (algumas objetivas, outras talvez secretas) dentro de Memória no esquecimento. Na nau frágil da mente de sua personagem central, Juremir põe em marcha seus remos: que são feitos de palavras como se fossem os próprios neurônios.

·      Crítico literário

*

Fragmento

Dores da memória

“O que é mais doloroso: não conseguir esquecer ou não conseguir lembrar? Não sei. Eles não sabem, mas eu sei que ele se lembra de uma parte considerável, uma parte enorme, quero dizer, do que viveu quando criança. Na verdade, não consegue se esquecer dessa memória absoluta na falta quase total de lembranças. Quase tudo lhe escapa. Algo lhe sobra. Sabe, às vezes, que está sozinho nesta clínica, que chamam de casa de repouso e até mesmo de Jardim da Melhoridade, e que daqui não vai sair. Só no caixão. Um caixão pelo qual anseia, quando se lembra quem é, embora não tenha um só conhecido para segurar as suas alças. Ouço conversas sobre o seu estado de saúde. Em seguida, tudo se apaga e tudo se ilumina num tempo inesquecível. O tempo dele.

Sim, eles sabem que ele se lembra obsessivamente do seu pas- sado, faz parte, por assim dizer, dessa doença nojenta, numa das suas etapas, acho que são três, pelo que li, mas não se interessam por suas lembranças, essas memórias que ele vomita até se estafar e morrer. O sono para ele é como uma morte bem-vinda que custa a acontecer. A sua vida agora se resume a vegetar no excesso de uma lembrança, que lhe vem como uma golfada de vômito, e no esquecimento. Aos poucos, vai perdendo as palavras. Quando chegou aqui, havia uma beleza triste, quase trabalhada, na história que repetia sem parar. Era um velho estranho que falava como um livro e revirava os olhos.

– Se me faço entender – repetia.


– Por favor, acalme-se – diziam-lhe os atendentes.

A calma era um quadro estranho para ele. Uma vez, uma úni- ca vez, falou disso: “Penso na calma como numa camada de vidro sobre o pasto, uma película de geada sobre a grama numa manhã de julho. A calma era um estado de existência, o nosso, na placidez do nada. Naquele tempo, eu me surpreendia comigo mesmo, com meu rosto, minhas mãos, meu nariz, minha face no espelho da água gelada do regato”.

Que tempo foi esse? Ele não se lembrava.


– Um tempo congelado na eternidade, se me faço entender.”

 



domingo, 2 de janeiro de 2022

Nosso tempo


 

Primeiro me tiraram a voz,

Depois me cortaram os dedos,

Então fiquei a olhar mundo

Com meu olhar mais fundo

Por trás das lentes grossas.

Se minha voz já não fala,

Meu silêncio ainda cala

Na solidão do milharal.

 

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