sexta-feira, 21 de abril de 2023

Entrevista/Gilles Lipovetsky : O hiperindividualismo e a medicalização da sociedade

 


Por Juremir Machado da Silva

 

O filósofo francês Gilles Lipovetsky, autor de livros importantes como “O império do efêmero”, “A era do vazio”, “A sociedade pós-moralista”, “Tempos hipermodernos e “Metamorfoses da cultura liberal”, estará em Porto Alegre, dia 16 de maio, para falar no Fórum Unimed (Teatro do Bourbon Country), que contará com um belo time de palestrantes. Nesta entrevista exclusiva para o Caderno de Sábado ele mostra por que é um dos pensadores mais instigantes e originais do momento.

– A moda e o luxo estão entre os seus temas principais. A crise europeia atual produziu mudanças na relação das pessoas com esses elementos?

Gilles Lipovetsky – Depois da crise dos derivativos muitos se fala em transformações nos comportamentos das pessoas, que não estariam mais interessadas em coisas supérfluas e que renunciaram ao luxo por sabedoria e prudência. Não acredito nisso. A crise não mudou os valores, mas os comportamentos, pois as pessoas precisam economizar. Passamos ao consumo colaborativo. Por exemplo, dividir o carro, hospedar-se na casa de alguém por ser mais barato que o hotel e fazer trocas pela internet. É uma maneira de manter o mesmo modo de vida gastando menos. Não há transformação cultura. O único ponto em que há diferença é na ecologia. A ecologia transforma certas atitudes, inclusive na moda e no luxo, fazendo com que se preste a atenção a certos usos. Não há uma recusa do consumo, mas comportamentos  mais razoáveis para poder continuar consumindo. Não se trata de desistir das marcas de luxo, que nunca foram tão populares. Hoje, qualquer jovem conhece pelo menos uma 20 marcas de luxo. O consumismo faz parte do DNA das sociedades contemporâneas na medida em que os indivíduos no capitalismo de consumo são viciados em novidade. Não suportamos viver na repetição. Se o carro perde importância, os tablets e os smartphones interessam cada vez mais. Os games despertam um interesse incrível. A crise não mudou valores. O desejo de consumo é o mesmo.

– O senhor parou de falar em pós-modernidade e passou a falar em hipermodernidade. Qual é a diferença?

Lipovetsky – A pós-modernidade foi um conceito, que utilizei, mas não foi um momento da história. Isso nunca existiu. Significaria a morte da modernidade. Não é correto pensar assim. A ideia de hipermodernidade não é uma metáfora. Significa que os princípios inventados pela modernidade não encontram mais qualquer contraposição. São três: tecnociência, mercado e individualismo democrático. A tecnociência vai das nanotecnologias aos transplantes de rosto. O grande projeto moderno de Descartes, de dominação da natureza pelo homem, persiste. Essa dinâmica, que será sempre incompleta, é muito mais forte hoje, apesar da ecologia, do que na época da revolução industrial, que encontrava obstáculos na religião. Não existem mais obstáculos. O mercado, invenção da modernidade do século XVIII, a “mão invisível” de Adam Smith, teve muitos adversários radicais: anarquistas, marxistas e tradicionalistas, que propunham modelos sociais diferentes. Hoje, o mercado ainda encontra adversários, mas estes não apresentam qualquer modelo alternativo. Limitam-se a fazer denúncias morais. Há muita crítica e nenhum contra-modelo. Salvo a Coreia do Norte e Hugo Chávez, que morreu. O mercado domina tudo. Antes, existiam limites. A arte, a escola e o esporte ficavam fora da lógica mercantil. Agora, devem ser rentáveis. Por fim, temos dinâmica individualista e democrática, também inventada pela modernidade. O individualismo moderno era freado pela religião, pela família, pelas ideologias, pela política e pelos valores. Tudo isso se despedaçou. A democracia, no Ocidente, tornou-se incontestável, sem inimigos internos, e o individualismo assumiu um aspecto exacerbado. Os indivíduos querem se autodeterminar em autonomia completa em relação a qualquer lógica englobante coletiva.

– Muitos entendem que estamos num mundo mais violento e mais distante dos valores humanistas. É verdade?

Lipovetsky – A globalização produziu, de certa maneira, um mundo mais duro, aprofundando as desigualdades econômicas. O Brasil é um exemplo disso, terceiro país nesse quesito, com prédios de luxo a cem metros de favelas. Há algo violento nisso tudo. Nunca tivemos tantos bilionários e mais de um bilhão de pessoas vivendo com pouco mais de um dólar por dia. Por outro lado, os valores humanistas se disseminaram e estão por toda parte no mundo ocidental. Não há mais espaço para teorias racistas. Entre as duas grandes guerras, a ideologia racista cresceu com apoio da intelectualidade. Hoje, a sociedade, os intelectuais e a mídia se reconhece em valores humanistas. O comportamento é outra coisa. Os valores humanistas triunfam: respeito aos direitos individuais, liberdade, igualdade e tolerância. Quando acontece uma catástrofe natural, há surtos de generosidade. Cada um dá um pouco, sem sacrifício, sensibilizado pelas imagens, com valores humanistas emocionais, não por um dever, mas por uma empatia gerada pelas imagens difundidas pela mídia. O individualismo não é o mundo egoísmo. A violência vem diminuindo, afora os tempos de guerra, desde o século XVIII. Entre as democracias liberais há uma diminuição dos conflitos sociais. O sangue já no corre. No Paquistão podem haver cem mortos numa manifestação. Entre nós, um morto derruba um governo. Há, contudo, a violência das máfias, do tráfico de drogas e da marginalidade. O combate às drogas pela repressão fracassou. O Uruguai está dando exemplo ao descriminalizar e legalização da maconha. O dinheiro economizado na luta contra o tráfico poderá ser usado na educação. O moralismo político contra as drogas não funciona. A proibição alimenta a violência. Temos de liberar sem permitir a venda em qualquer lugar. A repressão só serve para encher as prisões. É inútil. Estados americanos também estão liberando. É o caminho.

– O senhor sustenta que consumimos cada vez mais por satisfação pessoal e não por desejo de distinção. Os consumidores tornaram-se mais conscientes e racionais?

Lipovetsky – Sim, cada vez mais as pessoas consomem por prazer. Não se vai ao restaurante para mostrar riqueza. Viaja-se para encontrar coisas diferentes, respirar, sair, fugir da rotina. É o consumo emocional. Não estamos mais no mundo de Marcel Proust e dos salões em que o importante era a distinção social. O consumo de distinção ainda existe em países emergentes, mesmo no Brasil, na China, onde os novos ricos querem mostrar o que têm. A ostentação é característica dos novos ricos. A maioria consome por prazer. São mais racionais e conscientes? Não. Existem os consumidores racionais e também os viciados, compulsivos, os obesos, os excessivos. Há quem se preocupe com o corpo, com a saúde, não engordar, e os que, ao contrário, comem mal. Nunca tivemos tanta obesidade. É o oposto da racionalidade. É o hedonismo. A racionalidade está na comparação dos preços. A emoção aparece nos comportamentos exacerbados tão comuns.

– Vivemos em sociedades mais permissivas ou mais rigorosas em termos de valores politicamente corretos?

Lipovetsky – Interessante. Quando eu escrevi a “Era do Vazio” (1983), essa era a situação: a sociedade estava se tornando menos rígida, mais cool, mais aberta, mais leve, influenciada por maio de 1968, no sexo, na família, nos costumes. Era o neoindividualismo. Isso continua. Mas a novidade é a existência de novas formas de rigidez, especialmente nas empresas, não a dureza da disciplina, mas a dureza das metas, exigências de eficácia que criam um clima de ansiedade. As pessoas temem não atingir os objetivos e culpam-se: não valho nada, sou ruim, etc. Por outro lado, há um clima de medicalização da sociedade, criando uma sensação de medo e de preocupação permanentes com o que se come, com o sol, com as ondas nocivas do celular, com tudo. Tudo assusta. Até os anos 1950, continuávamos no século XIX. Tudo isso explodiu. As relações entre pais e filhos ficaram mais soltas. Pode-se assumir uma vida sexual aos 16 anos de idade. Depois de um avanço, porém, estamos recuando em alguns pontos. Estamos ansiosos. A hipermodernidade é caracterizada por esse paradoxo: mais leveza e novas formas de rigidez.

– A globalização criou um mundo de mais compartilhamento cultural ou de mais uniformidade?

Lipovetsky – Os dois. Por um lado, como tem sido denunciado por muitos, temos uma Disneyworld, americanização do mundo, com as mesmas marcas e filmes, McDonald’s em Moscou, Xangai, São Paulo e Paris. Isso, porém, é metade da verdade. A outra face é a diversificação do mundo. Na música, encontramos 20 milhões de títulos em oferta. Nunca tivemos tanta escolha. Sei que a maioria vai escutar a mesma coisa. Mas a diversidade é enorme. Nunca tivemos tantos artistas, tantos museus e até o Big Mac não é o mesmo em Tel Aviv e em Moscou. Tem de se adaptar ao local. Há, ao mesmo tempo, mais uniformidade e mais diversidade. As pessoas são cada vez menos formadas por culturas de classe. No mundo burguês, todos eram obrigados a ser vestir da mesma maneira. Cada integrante da burguesia morava em bairros uniformizados, homogêneos, ia à ópera, tinha os mesmos gostos. Hoje, a mesma pessoa vai à ópera e come um hambúrguer, vê uma série americana na tevê e vai ao Grand Palais ver uma exposição. A dissonância é que conta. A cultura de grupo não controla mais os indivíduos. As casas burguesas kitsch, com seus tapetes e móveis, eram idênticas. Bastava ver uma foto. Era a pressão coletiva, que hoje só conta para os adolescentes. Temos a pressão do dinheiro, mas não de códigos impostos por grupos. Mark Zilberberg veste-se como um mano do Harlem e deve ter um Rolls-Royce. Nas sociedades tradicionais não havia diferença de gosto. Tudo era determinado por regras. Não se sonhava com a diferença, pois ela não existia. Hoje, o mundo é múltiplo e muda todo o tempo. As pessoas se divorciam porque buscam outras experiências e diferenças. Temos os mesmos telefones, pegamos os mesmos aviões e usamos o mesmo jeans, mas a maneira de usar essas coisas é totalmente diferente e extremamente pessoal.

– A moda é um instrumento de democratização do gosto?

Lipovetsky – A moda foi durante séculos um instrumento de distinção de grupos sociais. Na aristocracia, a moda era uma maneira de se diferenciar. As leis suntuárias surgiram para frear a loucura das pessoas e impedir que continuassem a se arruinar. No século XX, o prêt-à-porter democratizou as roupas e tornou quase impossível estar completamente fora da moda, que se tornou mais livre. As tendências não são categóricas. Cada um pode encontrar o seu estilo. O sucesso das marcas de luxo recria distinções. Não é a moda que democratiza, mas o gosto democrático que se apropria dos símbolos da moda. É o que acontece com a pirataria. Compra-se por 50 euros um produto de quatro mil como que dizendo: por que eu não teria direito a uma marca de luxo? A moda é uma ferramenta de individualização do gosto. A moda é plural. Os estilos dos criadores são diferentes. As mulheres escolhem em função de referências, que não são de classe, mas de gosto. É isso que se quer mostrar: um gosto, simples, cool, sexy, sofisticado, tudo é possível. A moda não é mais tirânica. A única regra é a criatividade. Mistura-se um chez barato da Zara com algo mais caro e chique de Prada. É o consumidor que sai do rebanho. Não é a originalidade que conta, mas a liberdade. Só os adolescentes querem ser iguais aos seus pares. É o único espaço do conformismo. Julgamos cada vez menos pela aparência. Cada um pode se vestir como bem entender.

– A condição da mulher mudou realmente? O combate à homofobia, ao racismo e ao sexismo surtem efeito? Estamos em sociedades de fato mais tolerantes?

Lipovetsky – Sim, mudou. A revolução para as mulheres é gigantesca. Os casamentos eram impostos, as mulheres não atingiam os mais altos postos nas empresas, não controlavam seus corpos, tudo isso se esfacelou. Os homens ainda controlam o poder nos conselhos de administração de muitas empresas ou ganham mais nas mesmas funções. Isso funciona por interesse, não por sexismo. É o sexismo sem ideologia. A hierarquia supostamente natural entre homens e mulheres estabelecendo diferentes tarefas não encontra mais legitimidade. É indefensável. Esse espírito pode existir na prática, mas sem legitimidade. Empresas sabem que a diversificação dos sexos favorece a boa gestão. O último limite às mulheres na França eram os submarinos da marinha. Acabou. Caiu a interdição. Toda diferença desaparecerá? Não creio. Atribuímos sentido às coisas. Tem um sentido ser homem ou ser mulher. As mulheres continuam valorizando mais se embelezar que os homens. É um comportamento de diferenciação. A homofobia e o racismo também não encontram mais qualquer legitimidade. O casamento homossexual é a prova dessa transformação. Na prática, o preconceito existe, mas sem legitimação social. O prefeito de Paris era um homossexual assumido. A tolerância avança. Não estamos em sociedades homofóbicas, embora ainda exista homofobia. A ideologia racista também caducou. Não existe mais superioridade do homem sobre a mulher, do heterossexual sobre o homossexual e de raça. Há, porém, muita xenofobia.

– O senhor nunca deu à mídia um papel determinante na vida das pessoas. A mídia, contudo, mexe com as pessoas: manipulação, influência, servidão voluntária ou sedução?

Lipovetsky – Escrevi “Tela global” sobre isso. Falo em sociedade de consumo e de comunicação de massa. A mídia tem um papel considerável na individualização social. A mídia, assim como o cinema, difundiu novos modelos de comportamento. A diferença não é genética. É preciso tomar conhecimento dela. A televisão contribui muito para a maneira de ver as coisas. Vemos o mundo pela televisão e pela internet. Mas não é correto falar em manipulação. O partido político controlava as pessoas. Hoje, posso ser de direita ou esquerda, mas discordar de meu partido. Posso ser cristão e discordar do Papa em certas coisas. A mídia contribuiu para essa autonomia difundindo o ideal da felicidade e do bem-estar. Influência não é manipulação. Se compro algo, influenciado pela publicidade, e não funciona, não compro de novo. A manipulação sempre atinge os outros, jamais que fala dela. O que funciona mesmo é a sedução. Uma mulher que se produz para sair não está manipulando. A mídia não tem o poder de manipular, mas de seduzir. É mais complexo.


– Estamos no narcisismo ou no cuidado de si?

Lipovetsky – O narcisismo hipermoderno não é o narcisismo do mito grego. Neste, Narciso ama a sua imagem. No narcisismo estético há contemplação. Narciso passivamente se contempla. O narcisismo hipermoderno é produtivo. Não paramos de nos produzir por meio de exercícios e limitações. Há uma construção de si. O narciso de hoje não se ama. Temos práticas narcisistas, como a obsessão pelo corpo, mas os narcisistas não se amam. Todas as mulheres se acham gordas. Elas não amam seus corpos. Trata-se de um narcisismo de ódio. Odeio meu corpo porque ele envelhece, degrada-se e quero impedir que isso aconteça. Quero permanecer jovem, belo e em uma boa saúde. Os psicanalistas me criticaram dizendo que usei o termo narcisismos de outra maneira que Freud. Para mim, é uma imagem, não um conceito, uma gestão de si, sem fim. Meninas de dez anos fazem regime. Pessoas de 70 ou 75 anos fazem plástica para permanecer sedutoras. A medicalização da sociedade também é um fator desse tipo de narcisismo.



Entrevista/Gilles Lipovetsky : O hiperindividualismo e a medicalização da sociedade

  Por Juremir Machado da Silva   O filósofo francês Gilles Lipovetsky, autor de livros importantes como “O império do e...