sexta-feira, 18 de março de 2022

Não olhe, veja

 


            Olhar pode ser muito fácil. É o que fazemos com as paisagens. Passamos os olhos sobre elas. Mas dificilmente levantamos o véu de nuvens, de bruma, de sombra ou de sol que as encobre. É muito comum escutar alguém dizer que se emocionou diante de um espetáculo da natureza. Há algo de verdadeiro nisso, certamente. Não se mente sobre algo tão impalpável e pessoal. Contudo, raramente se diz toda a verdade com esse tipo de declaração. Não sabemos olhar em profundidade. O belo acaba por nos confundir ou simplesmente por passar despercebido. Ficamos com a aparência da imagem. Ignoramos o que há por trás dessa película de beleza inicial.

     Devíamos fazer cursos intensivos de contemplação do pôr-do-sol assim como temos aula de fotografia, de alongamento, de direção e de programas de computador. Já não se aprende a pôr corretamente o pé no chão? Já não se aprende a caminhar em perfeita harmonia do organismo com o solo? Aplaudir o pôr-do-sol talvez seja um excesso teatral ou uma banalização. Chorar de felicidade, porém, não seria demasiado. Existe uma prova do incomensurável nisso que se apresenta diariamente a nós como a própria singeleza. Tentar ver a fina camada de êxtase que se revela entre chama e luz do sol é uma arte.

Quantas vezes deixamos de ir à janela, por indiferença, fitar a lua cheia sangrando acima dos arranha-céus? Quantos crepúsculos perdemos por falta de coragem de fechar o livro, desligar a televisão, interromper o trabalho ou apenas de espiar pelos olhos franzidos das nossas janelas? Quantas vezes perdemos o amanhecer, com seus cheiros, matizes e cores, por incapacidade de crer que é único na sua repetição? Quantas vezes deixamos de admirar a beleza singular do nosso pequeno universo particular por falta de visão de mundo?

            Dizem que temos dificuldade para admirar pinturas em museus por falta de cultura e de hábito. Com certeza há muito disso em cada um de nós, quase todos formados na pressa, no culto da aceleração e da utilidade e, principalmente, na perda da importância do sublime. Turistas, por exemplo, costumam ter listas do que não podem deixar de ver. Correm de um lado para o outro e só se sentem em paz, com a obrigação cumprida, quando “riscaram do caderninho” os itens do dia. Mas, afora tudo isso, estou convencido, há um problema de (re)educação do olhar. Não somos educados para ver.

     Olhar é uma dádiva da natureza. Embora simples, descobre o mundo para o ser. Ver é uma atividade complexa da cultura. A ignorância e a sofisticação são aliadas do cinismo. A primeira tem a vantagem de não conhecer a si mesma ou de ser explicada pela falta dos outros. A sofisticação não tem desculpas quando nos afasta da pureza das coisas e impede-nos de perceber, sob os nossos olhos, o que se esconde das nossas vistas e revela-se somente para as lentes sensíveis das nossas almas. Olhamos o mar, as árvores, as montanhas, os corpos, os homens ensimesmados e os pássaros na inconsciência do vôo. Olhamos, quase sempre, sem ver. O que não vemos?

            Não vemos a aura dos seres e dos objetos. Aura é o espírito das coisas. Uma palmeira tem aura. Um homem tem aura. A vida tem aura. Quase nunca as vemos. Gostamos de falar, não de ouvir. Adoramos opinar, não ouvir opiniões. Perdemos a capacidade de sentir o outro, de esperar o outro, de desejar o outro. Tudo isso nos parece um tanto piegas. Nossa arma contra a impossibilidade de ver é o sarcasmo. Sonhamos em ter tempo para não fazer nada, mas quando conseguimos alguns dias de isolamento, ou de falta de atividades “produtivas”, sentimos tédio. Fazemos da vida uma espécie de esteira em tempo integral e não aceitamos parar. Talvez com medo de refletir. Medimos tudo. Controlamos tudo: quantos quilômetros corremos hoje, as batidas do coração, o número semanal de relações sexuais, a produção de endorfina.

Olhar não produz necessariamente reflexão. Pode esbarrar na opacidade e no embaçamento. Não por acaso, falamos em dar uma “olhada” ou em “passar os olhos”. Ver compromete a totalidade do ser. Quem olha, na melhor das perspectivas, observa; quem vê, reflete – duplica o que viu. Estamos na era da imagem. Nunca se produziu tanto para os olhos. Porém, mesmo quando sabemos olhar, não sabemos (vi)ver. O grande desafio de cada um é transformar o seu olhar em visão. Todo mundo deve ser capaz de dizer, depois de ver, “eu vi…vi”.

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