Eu estive lá
Na solidão mais cruel
Na paz da caridade,
No inferno da rua cheia
Na lâmina que corta a maldade.
Eu estive lá
No cruzamento dos pedintes
No banquete sem requintes
Na maldição da poesia
Na oração da freguesia.
Eu estive lá
Quando mataram os inocentes
E sangraram os dementes
Na frescura do amanhecer.
Eu estive lá
Quando aboliram a escravidão
E quando capturaram escravos
Nas costas do ouro e do marfim.
Eu estive lá
Na sombra da mangueira
No fervor da chaleira
Na execução dos criminosos.
Eu estive presente
Na missa dos ausentes
Na prece dos descrentes
E na procissão mais recente.
Eu estive ausente
Quando me pediram para chorar
E salvar o inocente
Das mãos do indecente.
Eu estive distante
Quando as árvores frutificaram,
As flores deram cores
E a vida transbordou.
Eu naveguei
Por mares sangrentos
Na estação mais gelada
Expiando pecados.
Eu retornei
Quando não me esperavam
E plantei a semente
Dos que já não semeavam.
Eu comandei
A revolução dos descontentes
Na fronteira dos existentes
Onde um morto era rei.
Eu fiz amor na calçada
Diante de passantes
Saídos de poemas
E teus gemidos eram fonemas.
Eu transpassei o mistério
Como um ministério,
O enigma da transparência
Quem sou?
Eu estive lá
Nas franjas do tempo
No tampo da fruta vermelha
No lombo do cavalo alado.
Eu estive em toda utopia,
Nas tardes de melancolia,
Na aspereza do desejo
Num quarto de despejo.
Eu estive lá
Quando Deus se revelou
Aos que o ignoravam
E ninguém o saudou.
Eu estive na guerra
Lavrei a terra
Cultivei os campos
E desliguei as máquinas.
Eu vi o domo azul da sepultura
E a carne triste da criatura
Que orava em busca de luz
Lá onde não havia cruz.
Eu vi a reunião dos terroristas
E a pregação dos desesperados
No deserto dos andarilhos,
Na mortandade dos filhos.
Eu estive lá
Quando a família se encontrava no domingo
Para o almoço dos escolhidos
E me deram a melhor parte do banquete dos pobres.
Eu estava lá
Quando a luz a todos abençoou
E um rio de mel
Lambuzou a terra para o amor.
Eu estive presente
No pior e no melhor
No que chamam uma vida
Essa passagem de ida.
Eu vi o nascimento,
A morte, o assassino,
A amante, o destino
Meu corpo virar fumaça.
Eu vi o tempo,
O tempo que passa
Concedendo a graça
Da transfiguração.
Eu estive duas vezes
Em Quelimane,
Duas vezes em Samarcande.
Fui ao encontro da morte,
Que me destinou a sorte
Da navegação.
Singrei outros mares
Bebi em tantos bares
Dormi em tantos corpos
Matei quando me pediram.
Atravessei os séculos
Fui negro, fui branco
Fui negreiro, fui escravo
Só não fui monumento.
No auge da caminhada
Achei que era bravo,
Mostrei minhas armas ao vento
Caí soprado por uma brisa.
Eu montei cavalos de fogo
Acariciei a boca dos leões
Alimentei os mendigos
E trafiquei armas no Togo.
Eu caminhei de bengala
Bala e bala
No crepúsculo do rio
A alma transida de frio.
Eu adorei a lua,
As estrelas e o sol
Nas montanhas do poente
À espera do último trem.
Eu estive lá
Quando os homens plantavam sentidos
E Deus pedia esmola.
Eu vi o tempo e a sua morte,
A vida e a sua sorte,
A luz e o seu escuro
O presente e o seu futuro.
Eu vi o verde de Machu Picchu,
O domo azul de Tilla-Kari
a cúpula anil de Bibi-Khanym.
Eu vi a miséria sem tristeza de Moçambique
A mesquita depois da chuva,
A imensidão do rio dos Bons Sinais
E o voo do pássaro no Índico.
Eu vi mais do que tudo
A ovelha pastando
Dentro da capela abandonada.
Eu comi figos e pêssegos
Antes de comer a maçã,
Antes dessa longa marcha
Como uma febre terçã.
Eu vi a morte me levar
Sem ao menos perguntar
Se eu estava pronto.
Agora estou aqui
Decifrando a eternidade
À espera de um novo fragmento
Debulhando contas azuis.
Agora estou aqui
lembrando minhas mortes
A primeira, inesquecível,
num navio negreiro
A última de um tiro certeiro
A próxima, que virá,
quem conhece o futuro?
Eu estive lá
Entre o homem e a fera
Agora estou aqui
Nessa longa espera.
Fui robusto, fui rochedo
Fui poente, fui torpedo,
Agora sou fumaça.
Eu estive lá, ao lado de Ulugh Beg,
Vasculhando os céus de Samarcande,
Fixando em suas tábuas mais de mil estrelas
Blasfêmias do saber na sua inocência.
Eu estive aqui.
Eu estou aqui.
Olhando o domo azul da capela velatória
Onde pasta a ovelha solitária.
(do personagem em Acordei Negro)
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