quarta-feira, 6 de abril de 2022

Banho de chuva

  

            Por que será que nos vem, de repente, numa tarde de verão, quando o temporal desaba como uma sinfonia gratuita da natureza, essa vontade de tomar banho de chuva? Será apenas a saudade da infância? Ou, estranhamente, uma nostalgia do presente que não estamos conseguindo aproveitar? Complicamos a vida. Sempre queremos ir ao outro lado do mundo em busca do paraíso. Muitas vezes, chegamos a realizar esse sonho. Encontramos, no outro lado do mundo, o paraíso: uma praia bordada de palmeiras, um mar azul como o céu das nossas melhores lembranças, uma escultura feita pelo tempo. Sublime. Tão lindo e tão distante que nem percebemos o quanto podem ter algo do nosso cotidiano. Conhecemos, então, pessoas que sonham em vir ao outro lado do mundo – esse outro lado onde moramos nós – para também visitar um pedaço do paraíso.

     O outro lado do mundo também é aqui, onde vivemos, são nossas praias e recantos, nossos lagos e montanhas, nossa gente. Nossos banhos de chuva. Isso não significa que viajar seja inútil. Ao contrário, viajar é também uma forma de tomar banho de chuva. Mas não a única. Nos banhos de chuva da nossa infância a vida era simples, a água nos beijava o corpo demoradamente, nossos pés travessos acariciavam o chão, saltitando em poças d’água, e nossas risadas perdiam-se numa confusão de sons, de trinados, de tons, de confiança no futuro, embora nem sempre se soubesse conjugar os verbos, a não ser, quem sabe, no presente do indicativo. Num banho de chuva, ninguém se lavava de nada. A chuva era uma irrigação.

     Por que deixamos de tomar banhos de chuva? Por que ficamos com essa melancolia suave no peito e não tomamos uma providência? Conferir, por exemplo, a meteorologia na esperança de que chova no meio da tarde. Cada um terá certamente a sua razão. Um dirá que é alto executivo e não pode sair por aí de terno e gravata ensopando-se nas ruas de uma cidade grande. Uma senhora lembrará que é mãe de família e não tem mais idade para cobrir-se de ridículo bancando a criança no aguaceiro. Um homem sensato lembrará que cada coisa tem seu tempo. Um político fará uso de sua imunidade para justificar-se. Imunidade contra banhos de chuva. Mesmo algum adolescente dirá, talvez, que não gosta de pagar “mico”. Adulto parece que só toma banho de chuva em publicidade tipo “ser jovem”. Um conceito velho e seco.

     Banho de chuva, contudo, pode ser apenas uma metáfora existencial, uma atitude diante da vida, uma postura no dia-a-dia. Tomar banho de chuva é ter atitude. Aí está. Uma filosofia. Nem precisa ser banho de chuva mesmo. Pode ser tomar sorvete na praça e lamber os dedos. Sair para dançar. Tomar água na garrafa da geladeira e estalar os lábios de satisfação contra a etiqueta e as boas maneiras. Gritar gol com o entusiasmo dos velhos campeonatos que talvez só fossem melhores porque sabíamos ver com os olhos da alma na sua juvenil espontaneidade. Fazer uma declaração de amor depois de tantos anos de casamento e quando o costume e a intimidade já parecem dispensar a sedução e o impulso. Dar beijo de língua ao sair para o trabalho. Revisar um preconceito. Descobrir o outro. Dar o braço a torcer. Sair de si.

     Muita gente acha que sair de si ou transgredir significa somente cometer um ato ilícito, expor-se a um grande perigo ou andar na contramão do mundo. Existem almas arrebatadas que precisam de grandes causas e não sossegam se não puderem morrer pela humanidade. Isso pode ser muito bom. Necessitamos de heróis e de pessoas corajosas. Ao contrário do que de diz, ainda existem muitas causas humanitárias para engajar corações e mentes. Há, porém, um contingente significativo de homens e mulheres singelos que só precisam redescobrir um pouco do gosto da espontaneidade. Mergulhar no “fantástico do cotidiano” pode ser uma aventura cheia de surpresas.

A transgressão pelo banho de chuva, literal ou metafórico, de terno Armani ou de tailleur, de jeans ou de roupa social, no campo, na areia ou no asfalto, trazendo os filhos da escola, falando ao celular ao descer de um avião ou saindo de uma reunião de negócios, é uma terapia libertária. Não engorda nem emagrece de um jorro. Tampouco emplaca o branco total. No turbilhão das práticas úteis e utilitárias, como sempre observa um dos mais originais intérpretes dos tempos atuais, Michel Maffesoli, que nos encharcam de muita prosa e pouca poesia, nas quais muitas vezes se perde a existência para ganhar a vida, o banho de chuva serve apenas para lavar a alma. Afinal, em certas situações de poluição da mente, nada melhor do que uma boa ducha. Quando foi o seu último “banho de chuva”? Que está esperando?

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